Leonor Lacourt
Sodré é uma senhora discreta, elegante, tranquila, que em 2010 saiu da pacata
São Fidélis, às margens do rio Paraíba do Sul, e subiu a Serra do Mar, em
direção à também pacata Santa Maria Madalena. Trazia um sonho na bagagem: perpetuar
o legado de um avô que não chegou a conhecer.
O legado em
questão é uma planta: uma orquídea que é considerada uma “joia rara da
biodiversidade brasileira”. Julio Lacourt Sodré, o avô materno de Leonor, a
descobriu em 1940 numa das montanhas que cercam São Fidélis e no alto das quais
se estende o território de Santa Maria Madalena.
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Crédito da foto: Orquidário Recreio |
A realização do sonho parecia simples. Agora que estava aposentada, depois de 50 anos de magistério em São Fidélis, Leonor queria fazer trabalho voluntário ajudando a cuidar do orquidário do Horto Santos Lima, em Santa Maria Madalena, onde estaria toda a coleção de orquídeas do avô, incluindo a “joia rara” que ele descobrira.
Mas a história se revelaria bem mais complicada e misteriosa.
O primeiro mistério é o local exato onde a planta foi descoberta, informação que seu descobridor levou para o túmulo. Julio morreu de um ataque cardíaco em 1941, menos de um ano após o achado e logo depois de enviar a orquidófilos do Brasil e do mundo alguns exemplares, filhos da planta original, que conseguira cultivar em seu jardim. Ainda bem que o fez, porque ela nunca mais foi encontrada na natureza, o que confirma sua raridade.
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Julio Lacourt Sodré, o descobridor da planta |
Nascido
numa família francesa que imigrara para Campos no começo do século 20, Julio se
fixou em São Fidélis, onde se casou com uma jovem local, Maria Emília do Santos
Sodré. Ele era um simples funcionário do Departamento de Correios e Telégrafos,
que, nas horas vagas, cultivava orquídeas que recolhia nas matas. Não tinha
treinamento científico. Mas, ao topar com o pequeno exemplar de belas flores
cor-de-rosa pendurado no alto de uma árvore no meio da mata, intuiu estar
diante de uma nova espécie. Tratou então de distribuí-la entre os conhecedores
com quem se correspondia no país e no exterior. Por isso, todos os raros, e
caros, exemplares existentes hoje em alguns poucos orquidários e jardins
botânicos são descendentes do exemplar original encontrado por Julio. Bela e
frágil, é uma planta difícil de cultivar e suas flores, que surgem entre outubro e janeiro,
duram apenas alguns dias.
Anos depois
da morte do descobridor, a planta, já reconhecida como uma nova espécie, foi
batizada de Laelia fidelensis pelo
botânico gaúcho Guido Pabst, que a incluiu num importante inventário das
orquídeas brasileiras publicado na Alemanha em 1975. Mas, desde então seu nome
científico já foi mudado pelos taxonomistas (pesquisadores que se dedicam a
nomear espécies de fauna e flora) pelo menos cinco vezes: Laelia fidelensis, Brasilaelia
fidelensis, Cattleya fidelensis, Chironiella fidelensis, Hadrolaelia fidelensis e, o mais
recente, Sophronitis fidelensis. Isso significa que, quase 100 anos após a
descoberta, os cientistas ainda não têm muita certeza de a qual gênero pertence
a pequena “fidelensis”.
O sonho interrompido
A história
do próprio Julio também é cheia de lacunas. A neta Leonor acha que ele nasceu
na França e tinha 16 anos quando veio para o Brasil com a família. Mas mesmo isso é impreciso.
De
concreto, Leonor sabe que, após a morte do avô, sua avó Maria Emília ficou em
dificuldades financeiras e decidiu pôr à venda a coleção de orquídeas do
marido. Reza a crônica familiar que ela escreveu uma carta ao poderoso
governador do então Estado do Rio de Janeiro, Ernani do Amaral Peixoto, genro
do presidente Getúlio Vargas. Ele foi a
São Fidélis, gostou do que viu, fez uma generosa oferta. E é aí que Santa Maria
Madalena entra na história.
O município
já era a sede do Horto Santos Lima, fundado em 1932 pelo botânico local Joaquim
dos Santos Lima e então subordinado à Secretaria de Agricultura do estado. Embora
sua principal função fosse produzir mudas de árvores frutíferas para estimular
a agricultura do município, Santos Lima construiu ali um ripado para abrigar
orquídeas e o batizou de Ripado Ary Parreiras, em homenagem ao político que o
ajudara a criar a instituição. Amaral Peixoto mandou que a coleção comprada da
viúva de Julio Lacourt fosse transferida para lá.
Mais tarde
o ripado foi rebatizado de Orquidário Ary Parreiras e o Horto Santos Lima
passou a ser subordinado ao INEA, da Secretaria de Meio Ambiente, com a função
de produzir mudas de plantas nativas para reflorestar a Mata Atlântica em todo
o estado.
Foi ali que, há 13 anos, Leonor, a septuagenária aposentada, neta de Julio e Maria Emília, apareceu disposta a trabalhar de graça. Para sua imensa decepção, descobriu que não havia mais orquídeas no orquidário. Tinham morrido ou se extraviado, tanto quanto o exemplar original de Julio. Mais um mistério na história da Laelia fidelensis, a joia rara achada e perdida.
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O antigo orquidário, agora tomado pelo mato |
Inspiração para artistas
Para quem
quiser ver ao vivo a estrela desta história, há orquidários em Petrópolis, em
Niterói, e até um na própria cidade de São Fidélis que a cultivam. Com sorte,
talvez se possa até comprar um exemplar. Na internet, um orquidário de Portugal
a oferece por 50 euros (mais de R$ 300). Mas o anúncio avisa que a mercadoria
está esgotada.
Como costuma acontecer com coisas belas, raras e misteriosas, a Laelia fidelensis tem despertado a imaginação de artistas e artesãos. Alexandre Mury, um artista multidisciplinar e multimídia nascido em São Fidélis e com obras no acervo do Museu de Arte do Rio (MAR) e no Museu de Arte Moderna (MAM), inspirou-se na orquídea que leva o nome de sua cidade para criar um projeto que conecta arte, identidade e cultura.
Anos atrás, uma prima de Leonor comprou, num evento no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, um par de brincos de ouro, criado por uma artesã de joias. A peça busca reproduzir a beleza da Laelia fidelensis. (Texto: Terezinha Costa)